29-08-2011 | Ciência / Comportamento / Sociedade
Homofobia e universo “psi”: algumas considerações
por Ricardo Cabral
Nos idos de 1972, um psicólogo chamado George Weinberg resolveu criar um neologismo juntando dois radicais gregos– όμός (semelhante) e φόβος (medo) — para dar conta de uma determinada questão clínica. Era a estreia da palavra homofobia, entendida por Weinberg como o “medo expresso por heterossexuais de estarem em presença de homossexuais”. Embora ainda seja uma definição usual do termo, há tempos deixou de dar conta da questão. O motivo? Simples, ao alcance de quem estiver disposto a vê-lo: trata-se de uma apreciação estritamente individual e psicológica. Sendo assim, desconsidera o caráter social, cultural, pedagógico, científico, jurídico e institucional da homofobia, entre outras tantas dimensões que vão muito além do medo, da fobia, da repulsa e mesmo do ódio a homossexuais experimentado individualmente por diversos heterossexuais. (Se bem que o problema não se restringe às definições de homofobia. Há discussões sobre as limitações do próprio termo, se ele precisaria de novas ressignificações ou se valeria substituí-lo por outro que expressasse melhor a complexidade do fenômeno. Vale conferir artigo do sociólogo Rogério Junqueira que problematiza bem essa questão.)
O momento em que o termo surgiu também é significativo, especialmente em relação ao universo “psi”. Foi por essa época, mais precisamente em 1973, que a American Psychiatric Association (APA) retirou a homossexualidade de seu DSM, sigla em inglês para Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Embora esse fato tenha sido um marco de repercussão mundial, a mudança na forma como o universo “psi” passou a olhar a homossexualidade não ocorreu instantaneamente. Afinal de contas, foram catorze anos para que o diagnóstico de “homossexualidade egodistônica” também saísse do mesmo DSM. Além disso, foi só em 1990 a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade de sua Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), outra publicação de referência que também engloba transtornos mentais. (No Brasil ela deixou de ser considerada doença, distúrbio ou perversão em 1985, primeiro pelo Conselho Federal de Medicina, e apenas em 1999 pelo Conselho Federal de Psicologia). Em função desses eventos, o atual discurso da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise até que anda afinado, embora infelizmente ainda seja comum encontrar profissionais dessas áreas com posturas patologizantes, o que só confirma o longo caminho a percorrer até o universo “psi” se tornar um bom representante da sociedade mais equânime e justa que precisamos.
E sobre o “discurso afinado” do parágrafo anterior, vale um esclarecimento. É que os dados históricos mencionados levaram a uma importante virada epistemológica (ainda em curso): o fato das homossexualidades terem deixado de ser objeto preferencial de estudo, com o foco dirigindo-se para as razões que levaram essas formas de sexualidade a serem objeto de rejeição, aversão e ódio. O jurista Daniel Borrillo tem mais a dizer:
Esse deslocamento do objeto de análise sobre a homofobia produz uma mudança tanto epistemológica quanto política. Epistemológica porque não se trata exatamente de conhecer ou compreender a origem e o funcionamento da homossexualidade, mas sim de analisar a hostilidade provocada por essa forma específica de orientação sexual. Política porque não é mais a questão homossexual, mas a homofobia que merece, a partir de agora, uma problematização particular.
Quer se trate de uma escolha de vida sexual, quer se trate de uma característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade deve ser considerada tão legítima quanto a heterossexualidade. [...]
Como um atributo da personalidade, a homossexualidade deve permanecer fora do interesse interventor das instituições. Tal como a cor da pele, a opção religiosa ou a origem étnica, ela deve ser considerada um dado não pertinente na construção política do cidadão e na qualificação do sujeito de direitos. (2009, p. 16) [Grifos meus]
Essa mudança epistemológica e política surgiu a reboque dos movimentos reivindicatórios cujas lutas geraram, em boa parte dos países ocidentais, normas contra a discriminação explícita a minorias, especialmente em relação ao preconceito racial, aos direitos das mulheres e dos portadores de necessidades especiais, entre tantos. Porém, se por conta dessas normas a discriminação explícita de fato vem diminuindo — com discursos contra todo tipo de preconceito na ponta da língua da maioria —, o que se observa é que esse mesmo preconceito assumiu outras formas, tornou-se mais sutil e, consequentemente, mais difícil de combater. E no que diz respeito às minorias sexuais ainda sem leis anti-preconceito, os avanços têm sido bem mais lentos. Pior: no Brasil, cada passo na direção de uma sociedade mais tolerante e inclusiva — caso do judiciário, com o reconhecimento pelo STF da união homoafetiva como entidade familiar, e do legislativo, com a discussão da criminalização da homofobia (a passos lentos, é verdade) — parece gerar reações contrárias bastante duras. As recentes manifestações públicas do deputado Jair Bolsonaro e do pastor Silas Malafaia são um claro exemplo disso.
Manifestações desse quilate, somadas às agressões físicas e às cifras alarmantes de assassinatos de membros da comunidade LGBTT sugeririam que a homofobia aumentou nos últimos tempos. Porém, o que de fato se observa é uma maior visibilidade de crimes de ódio que existem há tempos. A grande diferença é que há cada vez mais informações, mais notícias são veiculadas sobre um tema antes tratado como inexistente. Um indicador interessante sobre esse tipo de preconceito é a pesquisa recém-publicada (julho de 2011) sobre a união estável entre homossexuais e outros temas correlatos (adoção de crianças por casais homossexuais; homossexuais ocupando cargos como médicos, policiais e professores; descobrir que um amigo é homossexual etc.). Uma primeira leitura mostra o Brasil como um país majoritariamente conservador, já que 55% dos entrevistados se mostraram contrários a união estável. Mas quando esses dados são avaliados em suas especificidades, encontramos que em diversas faixas etárias a maioria é favorável à união estável e aos demais temas envolvendo homossexuais — 51% na faixa de 30 a 39 anos; 55% na de 25 a 29 anos; e 60% na de 16 a 24 anos —, indicando que as novas gerações seriam mais tolerantes; que quanto maior escolaridade, maior aprovação; e que a maioria das mulheres também é favorável à união estável. Traçando paralelos entre alguns dados dessa pesquisa e os encontrados em outra, Juventudes e Sexualidade – UNESCO, realizada em 2001, é razoável inferir que nos últimos dez anos houve por parte dos jovens uma sensível diminuição de atitudes preconceituosas contra homossexuais.
(Pequena digressão. Em relação ao próprio sujeito, a palavra “visibilidade” reflete anseios, especialmente o de não mais precisar negar quem se é nem tampouco ser negado, anulado pelos demais por ser quem se é. Ao mesmo tempo reflete temores como o de ser posto em evidência e tornado alvo não apenas de manifestações sutis de discriminação, mas de ações inferiorizantes, desumanas, violentas, de atentados com requintes de crueldade às suas próprias vidas… Termino a digressão.)
Retornando ao universo “psi”, observamos que a despatologização das homossexualidades tem sofrido resistências, sendo que entre alguns profissionais há quem tenha manifestado as suas de maneira mais explícita. Um dos exemplos recentes e de maior repercussão foi o da psicóloga Rozângela Alves Justino, que em 24 de agosto de 2009 recebeu censura pública do Conselho Regional de Psicologia (RJ) — posteriormente ratificada pelo CFP — por infringir o código de ética da profissão ao oferecer “tratamento” para a homossexualidade, indicando com isso que a orientação sexual de caráter homoafetivo seria uma doença. Outro, anterior a ele, foi o Projeto de Lei 717/2003 apresentado à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pelo deputado estadual Édino Fonseca, do PSC (também pastor da Assembleia de Deus), que propunha um programa estadual de “tratamento e cura” da homossexualidade a ser financiado pelo estado. O referido projeto contou com apoio tanto de grupos religiosos quanto de certo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC). Para desagrado de ambos e em consonância com as diretrizes dos Conselhos Federais de Medicina e de Psicologia, o referido PL acabou rejeitado por trinta votos contra seis no dia 8 de dezembro de 2004.
Por mais que seja desconfortável admiti-lo, esse tipo de ação por parte de alguns profissionais do campo “psi” não deveria surpreender. Embora se espere que constituam uma categoria esclarecida em torno do assunto, trata-se de um grupo composto por pessoas do seu tempo, com suas concepções de mundo, suas ideologias, tendo suas identidades pessoais e profissionais atravessadas pela educação, pela classe social, pela origem (social, geográfica etc.) pelo gênero, pela geração, pela eventual formação religiosa, pelas relações de poder e por tantas outras instâncias e dimensões que nos fazem os humanos que somos. Consequentemente, é justo pensar que parte do grupo se sinta ameaçada pela desestabilização que as lutas em torno das políticas sexuais provocam no sistema sócio-sexual (cf. Welzer-Lang, 2009), isto é, que temam o que para eles se configura como ameaça à dominação masculina e à heteronormatividade. Talvez não houvesse gravidade se apenas sentissem e guardassem esses sentimentos para si — num equivalente da “aceitação” do homoerotismo, desde que discreto e de preferência “dentro do armário”. O nó da questão está em como tais representantes desse campo de saber-poder lidam com isso, ou seja, que discursos, práticas e “verdades” são ditas e postas em prática por eles em nome da medicina e da clínica e que só se prestam à defesa e manutenção da naturalização da heterossexualidade.
Em torno da heteronormatividade, Daniel Borrillo tem também algo a dizer:
A lembrança constante da superioridade biológica e moral dos comportamentos heterossexuais faz parte de uma estratégia política de construção da normalidade sexual. A heterossexualidade aparece, assim, como o padrão com o qual todas as outras sexualidades devem ser comparadas e medidas. É essa qualidade normativa — e o ideal que ela encarna — que constitui uma forma específica de dominação chamada heterossexismo. Este pode ser definido como a crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a heterossexualidade assume posição superior. Todas as outras formas são qualificadas, na melhor das hipóteses, como incompletas, acidentais e perversas, e na pior, como patológicas, criminosas, imorais e destruidoras da civilização. (op. cit., p. 25)
É a serviço dessa qualificação das sexualidades que boa parte dos saberes “psi” se prestou ao longo da história. E não apenas em suas práticas, mas também na produção de um saber permeado de preconceitos entranhados. Nesse sentido, coube à psicanálise um importante papel, seja como crítica ao discurso da psiquiatria, da sexologia e do aparato jurídico do século XIX acerca da sexualidade — onde a homossexualidade era marcadamente patológica, aberrante e merecedora de sanções jurídicas —, seja como ratificadora de uma heteronormatividade. Para começar, em seu artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) Freud tratou da homossexualidade como uma orientação sexual tão legítima quanto a heterossexualidade, acrescentando que
[...] a psicanálise considera [...] que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual mediante a restrição num sentido ou noutro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido. No sentido psicanalítico, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher também é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química. (Freud, 1905, s. p.). [Grifos meus]
Foi um posicionamento ousado para a época. Além disso, não perdeu sua atualidade, inscrevendo-se claramente na mudança epistemológica de que tratei em parágrafos anteriores. Para a psicanálise, ao contrário dos instintos nos animais, no ser humano a pulsão sexual não tem objeto fixo. Neste,
[...] o objeto da pulsão é diversificado, anárquico, plural e parcial; exprime-se de várias formas: oral, anal, escopofílica, vocal, sádica, masoquista, dentre outras. Com isso, Freud divorcia a sexualidade de uma estreita relação com os órgãos sexuais, passando a considerá-la como uma função abrangente em que o prazer é sua finalidade principal, sendo a reprodução uma meta secundária. Além disso, ao postular que a sexualidade vai além dos órgãos genitais, o autor leva ‘as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito que o dos adultos normais’ (Ceccarelli, 2008, p. 74)
Haveria, portanto, uma disposição bissexual original em todo ser humano e só a partir do complexo de Édipo é que se constituiria a “escolha do objeto” (hétero, homo etc.). Há, porém, um ponto limitador: o fato da psicanálise restringir a noção de diferença sexual a uma única matriz binária, as oposições entre feminino/masculino, sexo/gênero, natureza/cultura e heterossexualidade/homossexualidade. Ela não comportaria, por exemplo, a experiência da transexualidade, que só poderia ser vista por um viés patológico já que nela não haveria conformidade entre sexo biológico e gênero. Esse entendimento de parte da psicanálise também é compartilhado pela sexologia e pela psiquiatria, tratando-se de “[...] uma concepção normativa seja dos sistemas de sexo-gênero, seja do dispositivo ‘diferença sexual’. Ambas estão fundadas numa matriz binária heterossexual que se converte em sistema regulador da sexualidade e da subjetividade” (Arán, 2006, p. 50) [grifos meus].
Percebe-se então que nem tudo são flores na teorização psicanalítica em torno das homossexualidades. Nos mesmos “Três ensaios…”, o pai da psicanálise discorre em uma nota de rodapé sobre a constituição da homossexualidade (masculina), dizendo que “Nos tipos invertidos pode-se quase sempre confirmar o predomínio de constituições arcaicas e mecanismos psíquicos primitivos. A vigência da escolha narcísica de objeto e a retenção da importância erótica da zona anal figuram como suas características mais essenciais” (id.) [Grifos do autor]. Estas características indicariam uma espécie de “retardamento do desenvolvimento psíquico” do sujeito homossexual, subentendendo-se que a heterossexualidade seria matriz e referência de normalidade. Embora se afirme que Freud deixou a questão da homossexualidade em aberto, durante boa parte da história desse saber ela foi “[...] mantida no quadro clínico das perversões, fixada às fases pré-genitais, pré-edípicas, pré-simbólicas ou pré-qualquer-coisa que definiriam o sujeito homossexual como alguém que carece de algo — no mínimo normalidade e moralidade” (Vale, 2008, p. 119).
Na medicina brasileira, por sua vez, temos um exemplo representativo de medicalização da sexualidade: os “experimentos com homossexuais efeminados” realizados pelo Dr. Leonídio Ribeiro, na década de 1930. Ele montou o Laboratório de Antropologia Criminal, realizando experimentos sobre identificação civil e criminal. “Em pauta [...] estavam ‘a patologia da impressão digital, os tipos sanguíneos dos índios guaranis, os biótipos criminais afro-brasileiros e as relações entre a homossexualidade masculina e o mal-funcionamento endócrino’” (ibid., p. 121) [Grifos meus]. Com auxílio da polícia, Ribeiro reuniu 195 “homossexuais profissionais” e levou-os ao seu laboratório para então fotografá-los e medi-los. Buscava encontrar alguma relação entre sua aparência física e sua sexualidade. “O alvo [...] eram os efeminados que se prostituíam. Além dos ossos, a distribuição capilar pelo corpo, púbis e cabeça constituía-se ‘num meio excelente de identificar disfunções hormonais e, assim, a homossexualidade’ ” (id.).
Há inúmeros exemplos da medicina, da sexologia, da psicologia e da psicanálise a respeito das homossexualidades, mas creio que para as pretensões deste texto estes sejam suficientes. O que verdadeiramente interessa aqui é a questão da homofobia e o lugar dos atores do campo “psi”, de seus saberes e de suas práticas. Nesse sentido, descrevi como num primeiro momento a homofobia circunscreveu-se ao sujeito psicológico e que hoje em dia essa apreciação foi (e ainda precisa ser) estendida para outros campos. Isso porque a homofobia é um fenômeno socialmente partilhado, tributário de uma cultura falocêntrica onde a o apelo à virilidade é a norma — e a violência é a maneira usual de atender a esse apelo —, fazendo com que as referidas abordagens médicas e clínicas sejam insuficientes para dar conta dela. Ao mesmo tempo essas abordagens se prestaram (e eventualmente ainda se prestam) para normatizar a sexualidade, reiterando a matriz heterossexual e reprodutiva e, consequentemente, “psiquiatrizando” o prazer dito perverso, do qual a homossexualidade seria “o centro organizador do discurso sobre o desvio sexual” (Lanteri-Laura apud Arán, op. cit. p. 52).
Dentro desse quadro, como os integrantes do universo “psi” deveriam agir em relação à homofobia? Pelo apresentado até o momento fica evidente não haver somente uma resposta, seja pela própria diversidade do universo “psi”, seja pelo caráter plural e polissêmico do termo. Mas algumas questões podem ser levantadas, começando por uma reiteração incessante e inequívoca da despatologização das homossexualidades inaugurada a partir de sua retirada do DSM e do CID. Outro ponto seria evitar patologização da própria homofobia, ou ao menos evitar lidar com ela exclusivamente nesses termos. Não que os comportamentos homofóbicos estejam totalmente livres de dimensões patológicas, mas objetivar a homofobia meramente como doença é insistir num embate estéril onde um lado trata de atribuir ao outro o rótulo de doente por meio de discursos medicalizados. Espera-se também que os profissionais “psi” mantenham-se sempre críticos em relação as suas próprias práticas e a sua produção teórica. Quanto às práticas, convém esvaziar o lugar parametrizador que sempre lhes coube a respeito do tema, um papel que se presta tanto à re-patologização das homossexualidades quanto à (hetero)normatização. (Por isso atenção, profissionais “psi”, pensem quinze vezes antes de aceitar o papel de especialistas em programas de televisão, combinado?)
Sobre as formulações teóricas, tenho um claro porém. Ele diz respeito às pesquisas que ainda insistem em encontrar as “causas naturais” das homossexualidades, num claro retrocesso em relação à mudança epistemológica de que falei anteriormente. Ocorre que tentar legitimar as identidades homossexuais, bissexuais e transgêneros por meio de pesquisas que busquem diferenças genéticas, hormonais, na morfologia do cérebro e que tais, não garante a diminuição da discriminação nem o fim das fronteiras jurídicas que hoje existem entre as sexualidades. Arrisco a dizer que o contrário é mais provável. Insistir no caminho do essencialismo biológico é desconsiderar que há razões éticas suficientemente sólidas para se exigir o devido reconhecimento da diversidade sexual e de gênero. Além disso, se o histórico sobre a discriminação das homossexualidades se caracterizou pela hierarquia – com a masculinidade hegemônica no topo – e pela normatividade, atualmente há outro mais “moderno”: por mais surpreendente que pareça, trata-se justamente daquele que afirma a diversidade das sexualidades. Não se trata mais de afirmar a superioridade heterossexual, mas de defender e “proteger” a diversidade. Graças a esse mecanismo político, ao mesmo tempo em que as manifestações homofóbicas mais explícitas e violentas passam a ser coibidas, a afirmação da diversidade “[...] torna possível retirar gays e lésbicas do direito comum (universal) e inscrevê-los em um regime de exceção (particular)” (Borrillo, op. cit., p. 32). Essa lógica diferencialista já serviu para impedir que as mulheres votassem e que negros tivessem os mesmos direitos que brancos. É a mesma lógica que concede alguns direitos aos não heterossexuais, mas nunca a igualdade de direitos, já que as diferenças exigiriam um regime jurídico igualmente diferenciado.
A criminalização da homofobia será um importante passo para coibir os alarmantes índices de violência que mancham a imagem de um país como o Brasil, dito tolerante. Mas a repressão não basta. É preciso prevenção, o que implica em ações pedagógicas. Se a invisibilidade resulta em desconhecimento ou indiferença diante do tema, é preciso torná-lo visível, começando pelo questionamento da ordem heterossexista, essa mesma que se reafirma a cada atitude preconceituosa que infra-humaniza quem não corresponda a certas expectativas quanto ao gênero. Em outras palavras, são necessárias ações pedagógicas envolvendo famílias, escola, instituições e, porque não, toda sorte de profissionais que detêm algum poder de influência sobre a questão, caso de representantes dos poderes legislativo, executivo e judiciário, assim como também os profissionais da saúde, verdadeiras autoridades aos olhos do público leigo. Nesse sentido, ao menos em relação aos psicólogos há muito sendo feito a favor do combate à homofobia e contra a (re-)patologização das homossexualidades. A Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia, de 22 de março de 1999, por exemplo, foi a primeira regulamentação em defesa da livre orientação sexual a ser publicada entre todos os conselhos profissionais do país, estabelecendo normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual, determinando em quatro dos seus seis artigos que:
1) “os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade”; 2) “[...] deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”; 3) “[...] não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”; 4) “[...] não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica”, além de um parágrafo único que veta a colaboração dos psicólogos “[...] com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”.
Além dessa resolução, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP SP) lançou em maio deste ano um manifesto em apoio à Campanha Internacional Stop Trans Pathologization-2012, pela despatologização das identidades trans (travestis, transexuais e transgêneros) e a sua retirada dos catálogos de doenças (o DSM e a CID). Trata-se de uma ampliação do debate em torno das homossexualidades, já que travestis, transexuais e transgêneros seguem enquadrados na categoria psicopatológica “transtornos da identidade sexual”, além de serem as vítimas preferenciais das formas mais violentas de discriminação homofóbica, ao mesmo tempo em que são as mais invisíveis aos olhos do restante da sociedade. Esse tipo de manifesto se dirige não apenas ao público em geral, mas aos próprios psicólogos. Como profissionais do campo “psi”, precisam submeter-se a ações pedagógicas para que deixem de ratificar a heteronormatividade e repremir os que se desviam dela. Que venham mais iniciativas como essa. Nós, psicólogos, agradecemos.
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Referências
ARÁN, Márcia. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora (Rio de Janeiro) v. IX n. 1 jan/jun 2006 49-63.
BEZERRA JÚNIOR, Benilton. O desgaste de um conceito. Jornal Folha de SP, Caderno MAIS!, 3 de Dezembro de 1995.
BORRILLO, Daniel. A homofobia. In: LIONÇO, Tatiana e DINIZ, Debora (orgs). Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres : EdUnB, 2009.
CARRARA, Sérgio; VIANNA, Adriana R. B. “Tá lá o corpo estendido no chão…”: a violência letal contra travestis no município do Rio de Janeiro. Physis: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):233-249, 2006.
CECCARELLI, Paulo Roberto. A invenção da homossexualidade. Revista Bagoas, n° 2, 2008, p. 71-93.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
LACERDA, Marcos, PEREIRA, Cícero; CAMINO, Leoncio. Um Estudo sobre as Formas de Preconceito contra Homossexuais na Perspectiva das Representações Sociais. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2002, 15(1), p. 165-178.
LIONÇO, Tatiana e DINIZ, Debora (orgs). Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres : EdUnB, 2009.
MARQUES, Luciana Pereira. As homossexualidades na psicanálise. Trivium – Estudos Interdisciplinares, ano II, edição II, 2010, p. 467-84.
PEREIRA, Cícero .R. et al. Preconceito contra homossexuais e representações sociais da homossexualidade em seminaristas católicos e evangélicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Jan-Mar 2011, Vol. 27 n. 1, pp. 73-82.
VALE, Alexandre F. C. Antropologia e sexualidade: por um descentramento da enunciação científica. Revista Bagoas, n° 2, 2008, p. 115-132.
VIEIRA, Luciana Leila Fontes. As múltiplas faces da homossexualidade na obra freudiana. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, Vol. IX, Nº 2, p. 487-525 – jun/2009
WELZER-LANG, DANIEL. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Estudos Feministas, v. 9, nº 2(2001), p. 460-82.
Sugestões de leitura
Antes dos livros referenciados abaixo, recomendo um post do blog InQuIeTuDiNe, de Érika Pretes (advogada, militante do movimento LGBT e pesquisadora de direitos humanos) intitulado “Gay? Eu?”.
BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Vício: Ensaios Sobre o Homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.
_______. A Face e o Verso: Estudos Sobre o Homoerotismo II. São Paulo: Escuta, 1995.
LIONÇO, Tatiana e DINIZ, Debora (orgs). Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: LetrasLivres : EdUnB, 2009.
Psicólogo clínico (psicoterapeuta de orientação existencial) e mestre em educação tecnológica (CEFET/RJ).
Ricardo Cabral