O programa brasileiro de combate à Aids, que prevê o fornecimento universal e gratuito de antirretrovirais na rede pública, é considerado um dos mais bem-sucedidos do mundo. Mas para se adequar ao contexto atual, seria preciso dobrar o número de pacientes atendidos – possível apenas com a ampliação da oferta de testes de HIV, maior investimento em genéricos e adoção de uma postura agressiva na negociação de preços dos remédios importados.
A análise é de Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), no livro Coquetel: a incrível história dos antirretrovirais e do tratamento da Aids no Brasil, lançado em dezembro pelas editoras Hucitec e Sobravime.
A obra reúne pesquisas realizadas por Scheffer durante seu doutorado e pós-doutorado, este último com apoio da FAPESP e orientação do professor da FMUSP Euclides Ayres de Castilho. Agrega ainda a experiência do autor como ativista na luta contra a Aids desde 1988.
Na primeira parte do livro, Scheffer narra a evolução dos antirretrovirais desde o surgimento do AZT (zidovudina), em 1986, até os dias de hoje. Relata também a trajetória de incorporação da terapia no Sistema Único de Saúde (SUS).
“Antes do AZT, a Aids era uma sentença de morte. Em 1991, surgem outras drogas da mesma classe e tem início a terapia dupla, ainda com benefícios efêmeros. Foi a partir de 1995, quando surgiu uma nova classe de medicamentos conhecida como inibidores de protease, que houve a grande revolução no tratamento”, afirmou.
Nessa época, contou Scheffer, descobriu-se que, ao combinar drogas com atuação em diferentes fases do ciclo de replicação do HIV, era possível controlar o vírus. Surge o conceito de coquetel e a Aids se torna potencialmente uma doença crônica.
“A tecnologia dos antirretrovirais evoluiu muito rápido e foram surgindo drogas com menos efeitos colaterais, mais fáceis de serem tomadas. O Brasil acompanhou essa evolução, com certo atraso em alguns casos”, disse.
Das 30 marcas de antirretrovirais atualmente disponíveis no mundo, 21 são fornecidas pelo SUS e beneficiam cerca de 250 mil pacientes. Para Scheffer, isso só foi possível graças a uma conjunção de fatores favoráveis ocorrida no final da década de 1980 e início dos anos 1990.
“A epidemia se instala no Brasil na época em que o SUS tinha acabado de ser criado e que estavam acontecendo movimentos importantes sob a bandeira da saúde como direito de todos”, contou.
Além disso, a doença afetou no início uma população já estigmatizada e, por isso, organizada para lutar por seus direitos. “Graças à intensa mobilização das ONGs e ao ambiente político favorável, em 1996 foi tomada a decisão certa de se criar uma lei federal para reforçar a obrigação do SUS de fornecer o tratamento”, relembrou Scheffer.
Novo papel
A partir de 2008, começam a surgir evidências de que os antirretrovirais seriam importantes não apenas para o tratamento como também para a prevenção da Aids. “Estudos mostraram que quanto antes você diagnostica e trata a doença, não apenas o benefício individual é maior como também o coletivo, pois o risco de transmissão do vírus é reduzido”, disse Scheffer.
Em 2012, o novo consenso terapêutico brasileiro antecipou o início do tratamento para os soropositivos. Até então, os antirretrovirais só eram indicados quando a contagem de células de defesa (CD4) fosse inferior a 350 por milímetros cúbicos (mm³) de sangue. O novo valor de corte passou a ser 500/mm³, o que representa a entrada de um grande número de pessoas no programa.
Além disso, o Brasil passou a oferecer o chamado coquetel do dia seguinte, que deve ser tomado após a exposição acidental ao vírus no caso de estupro ou acidente de trabalho. Em alguns países, como a França, tem sido recomendado também depois de relação sexual sem preservativos com parceiro infectado.
“O número de pessoas que entra no programa por ano aumenta relativamente pouco – cerca de 30 mil. Mas agora será preciso ampliar o acesso. O Brasil tem necessidade e condições de dobrar o número de atendidos. Para isso, precisa aumentar a oferta do teste rápido de HIV e rever o programa de Aids, ou ele não será sustentável em um sistema subfinanciado como o SUS”, afirmou.
Segundo o pesquisador, o Brasil fabrica 10 dos 21 medicamentos fornecidos na rede pública, mas os preços dos genéricos não são competitivos quando comparados aos remédios de marca.
Além de investir na capacidade nacional de produção, de acordo com Scheffer, é preciso melhorar a negociação de preços dos medicamentos importados e discutir a possibilidade de serem quebradas novas patentes. “O Brasil hoje paga mais caro do que outros países. O Ministério da Saúde é o único comprador e, portanto, tem a faca e o queijo na mão para regular o preço.”
Outros fatores a serem considerados, segundo o autor, é a incapacidade dos serviços de saúde superlotados para assumir a nova parcela de pacientes incluídos no programa, o elevado índice de diagnóstico tardio e a alta mortalidade que persiste no Brasil – cerca de 12 mil soropositivos por ano.
“Todas essas questões precisam ser revistas. Não só para manter as conquistas, mas para avançar”, disse Scheffer.
Agência Fapesp