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terça-feira, 5 de julho de 2011

Juiz federal escreve sobre a união homoafetiva e vê na decisão do STF ´´O Fim da Monogamia``

29.06.2011

Juiz federal escreve sobre a união homoafetiva e vê na decisão do STF ´´O Fim da Monogamia``

O juiz federal Marcos Mairton, da comarca de Quixadá/Ce, conhecido por suas incursões na literatura e na música popular, escreve hoje sobre Direito, com exclusividade para o portal Direitoce. E enfoca a sempre discutida decisão do STF que sobre a união homoafetiva. O título define para o magistrado a sua tese. Trata-se, para ele, na prática, de uma decisão que decreta “O Fim da Monogamia”. Leia aqui, na íntegra:

O fim da monogamia
Marcos Mairton

"Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem ocupado lugar de destaque nos noticiários e nas conversas dos brasileiros. Não é para menos. Nossa Corte Suprema tem enfrentado temas novos e complexos, tais como aborto, pesquisas com células tronco, inelegibilidades e tantas outras, envolvendo discussões que facilmente desbordam do jurídico para o político, o moral e o religioso.

Aqui, atenho-me à decisão que reconheceu a validade jurídica da união estável entre pessoas do mesmo sexo, ultimamente chamada com mais frequência de união homoafetiva.

Nesse sentido, registro inicialmente que, embora não seja minha pretensão avaliar se foi acertada ou não a decisão do Supremo Tribunal Federal, quanto ao seu mérito, reconheço que o STF foi extremamente inovador e criativo em relação a essa questão, além do que se posicionou de forma a regularizar um incontável número de situações de fato que precisavam de solução jurídica.

A verdade é que, no mundo dos fatos, as uniões homoafetivas já existiam, mas sobre elas pairava grande insegurança jurídica, o que não faz bem à estabilidade social. O STF fixou o rumo que deve ser tomado em relação ao assunto, favorecendo essa estabilidade.

Dito isto, concentro-me nos efeitos dessa tomada de posição do STF, ou, pelo menos, em um desses efeitos, qual seja, verificar se outros modelos de uniões destinadas à formação de uma família estariam albergados pela decisão do Supremo.

Afinal, até antes de tal decisão, sabia-se que a união estável, assim como o casamento, era resultante de uma relação duradoura entre um homem e uma mulher, com o objetivo de constituir uma família. Agora, fixado esse entendimento inovador do STF, ficou estabelecido que essa relação – duradoura e com o intuito de constituir família – também pode ser entre dois homens ou entre duas mulheres.

Nessa linha de raciocínio, chamou-me a atenção o argumento do Ministro-Relator, Carlos Ayres Britto, no sentido de que “a Constituição Federal não dispõe, por modo expresso, acerca das três clássicas modalidades do concreto emprego do aparelho sexual humano. Não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo por modo emparceirado.

Logo, a Constituição entrega o empírico desempenho de tais funções sexuais ao livre arbítrio de cada pessoa, pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas. Embutida nesse modo instintivo de ser a “preferência” ou “orientação” de cada qual das pessoas naturais”.

Noutras palavras - não tão belas quanto as do Ministro, mas tentando ser mais simples - a natureza proporcionaria ao ser humano três formas de exercício de sua sexualidade: a abstinência, o sexo solitário e o sexo com a participação de outrem, sendo que a Constituição não aponta quais dessas seriam legalmente aceitas ou repudiadas.

Não ficou dito expressamente no voto se o sexo com a participação de outrem, ali chamado de “emparceirado”, inclui o sexo em grupo, mas este não é um ponto muito relevante nesta análise. O que importa aqui é perceber que, ainda segundo o Ministro-Relator, a Constituição Federal deixa ao arbítrio de cada indivíduo o exercício de qualquer dessa formas de uso da sexualidade, conforme a sua preferência ou orientação.

Isto significaria que, ao dispor pelo reconhecimento da “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” (art. 226, § 3º), silenciando em relação às demais possibilidades - tais como uniões somente entre homens ou somente entre mulheres - a Constituição não estaria afastando essas outras possibilidades, mas, ao contrário, respeitando-as.

Um dos fundamentos apresentados pelo Ministro para sustentar esse ponto de vista estaria na obra de um dos maiores teóricos do Direito de todos os tempos, Hans Kelsen, uma vez que esse raciocínio seria já "um modo de atuar mediante o saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual 'tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido'".

O outro fundamento seria a própria vedação ao preconceito e à discriminação, impostos pela nossa Constituição Federal, a qual relaciona dentre os objetivos fundamentais da República a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV).

Apoiado nesse dispositivo constitucional é que o Ministro-Relator afirma que é explícita a “vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’”.

Diante desses fundamentos, que conduziram ao reconhecimento jurídico da união estável homoafetiva, penso que são também acolhidas pela Constituição Federal do Brasil as relações poligâmicas. Ou, para usar uma linguagem mais simples: as uniões entre um homem e duas mulheres, ou entre uma mulher e dois homens, ou outras combinações possíveis.

Afinal, se a Constituição veda o tratamento discriminatório em razão do sexo dos seres humanos, aí incluído o uso dado às faculdades sexuais desses mesmos seres humanos, é fácil concluir que não é admitida em nosso sistema jurídico a discriminação contra pessoas que se sentem felizes e realizadas em uma relação entre mais de duas pessoas, como aquela que ocorre no filme “Eu, tu, eles”, cujo enredo, baseado em fatos reais, conta a história da vida conjugal de Darlene com Ozias, Zezinho e Ciro.

O mesmo se diga da aplicação ao caso da máxima kelseniana, segundo a qual “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Pois, se a Constituição se refere a homem e mulher, sem dizer quantos de cada gênero, é de se concluir, seguindo o raciocínio exposto no multireferido voto do Ministro-Relator, que o silêncio constitucional labora em favor do respeito às relações conjugais multilaterais.

É dizer: se do dispositivo constitucional no qual está escrito “o homem e a mulher”, é possível deduzir que a norma se refere a “um homem e outro homem” e a “uma mulher e outra mulher”, com muito mais facilidade se extrai que também alcança a expressão “homens e mulheres”.

É bem verdade, que há um ponto no qual o Ministro-Relator defende que algumas uniões fundamentadas na sexualidade estariam fora do abrigo constitucional, e dá o critério para isso: "quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra, como sucede, por exemplo, com essa ignominiosa violência a que o Direito apõe o rótulo de estupro. Ou com o desvario ético-social da pedofilia e do incesto. Ou quando resvalar para a zona legalmente proibida do concubinato".

À primeira vista, o argumento seria capaz de afastar a possibilidade da poligamia, notadamente se considerarmos que uma das formas de concubinato é a relação mantida entre uma pessoa já casada e outra, também casada ou não. Mas, não é bem assim.

Primeiro, é preciso reconhecer que não é possível por o concubinato na mesma prateleira do estupro, do incesto e da pedofilia. No estupro e na pedofilia, há flagrante violação de direitos fundamentais das vítimas e dos menores. No incesto, a própria natureza se encarrega de aumentar as chances de relações consanguíneas gerarem filhos defeituosos. No concubinato viola-se apenas o dever de fidelidade do casamento, violação já nem tão repudiada pela sociedade, tanto que o adultério deixou de ser crime desde 2005, com a entrada em vigor da Lei 11.106.

Mas o verdadeiro motivo pelo qual a exceção apontada no voto não exclui a poligamia, é que esta não se confunde com o concubinato. Na poligamia, cada um dos participantes tem consciência da relação multilateral da qual está participando, não havendo, portanto, quebra de confiança. Sendo a participação consentida, também não se pode falar de supressão de vontade. Trata-se apenas, portanto, de uma das possibilidades de união entre seres humanos, na qual o sexo é um de seus elementos, como o é o casamento monogâmico.

Em vista disso, o que se poderia apontar como justificador da intromissão do Direito, proibindo esse tipo de relação, se não a nossa tradição cultural monogâmica? A resposta é: nada. Não há nada que impeça a união conjugal entre mais de duas pessoas, a não ser a nossa cultura monogâmica.

Tanto é assim que em outros países - e outros grupos sociais mais restritos - a poligamia é aceita. Friedrich Engels, em sua clássica obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, chega mesmo a apontar como forma mais antiga e primitiva da família o casamento entre grupos inteiros de homens e mulheres.

O fato é que a família monogâmica é produto cultural da nossa sociedade. Nessa mesma sociedade formou-se a tradição de as uniões conjugais se formarem entre pessoas de sexos opostos, não obstante, isso mudou. E mudou porque as nossas tradições e estruturas culturais não podem se opor a princípios constitucionais e direitos fundamentais garantidos em nossa Constituição. Isto, aliás, não é nenhuma novidade. Decisões judiciais sobre tradições como a “farra do boi” e as “rinhas de galo” mostram isso.

Dessa forma, seguindo o raciocínio proposto no voto que conduziu o julgamento do processo relativo às uniões estáveis homoafetivas, o qual foi corroborado pelos demais Ministros, concluo que a monogamia está abolida no Brasil, revogadas tacitamente pela Constituição Federal de 1988 as normas infraconstitucionais que a proíbem.

A união estável, portanto, reconhecida constitucionalmente como entidade familiar, para fins de proteção do Estado, é possível não apenas entre um homem e uma mulher, como faz crer a literalidade do texto do art. 226, § 3º. Ela também pode ocorrer entre dois homens ou entre duas mulheres, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ou ainda entre mais de duas pessoas, conclusão à qual se chega aplicando ao número de participantes da relação conjugal o mesmo raciocínio adotado pela Suprema Corte em relação ao gênero desses participantes."
http://www.direitoce.com.br/noticias/50164/.html