domingo, 17 de abril de 2011

Movimento assexual traz à tona outra forma de encarar o desejo físico

Sexo | 03/04/2011 17h10min
Movimento assexual traz à tona outra forma de encarar o desejo físico
Grupo que despreza os prazeres da carne troca experiência em comunidades virtuais
Quase um desconhecido, o conceito motiva zombaria antes das devidas apresentações. Pouco discutido e entendido , dificulta até mesmo a busca de um verbo para classificá-lo: abdicar, negar, renunciar, desdenhar. O que faz, afinal, quem decide viver sem sexo, abdicando da prática, negando o desejo, renunciando ao prazer, desdenhando de relações tradicionalmente alicerçadas em um instinto tão primitivo? Mais à vontade em comunidades virtuais, os assexuais trocam o peso do preconceito pelo alívio do entendimento entre iguais.

"Não sinto desejo ou necessidade de fazer sexo. Não me sinto atraído por homens nem mulheres. É absurdamente confuso, já que ser gay significa sentir atração pelo mesmo sexo — não é o meu caso — e ser heterossexual é desejar o sexo oposto — o que também não ocorre comigo. Resta-me uma opção: assexualidade. Mas nem sei se isso existe...", diz um depoimento em uma discussão na Internet.

Deve-se pontuar uma diferença fundamental: assexualidade não é celibato, a abstinência atrelada a crenças e práticas religiosas. Mas isso não torna a tarefa menos complexa: afirmar-se assexual é negar, na opinião de especialistas, traços inatos da espécie humana.

— A sexualidade faz parte da construção da identidade. As pessoas não aceitam a possibilidade de alguém abrir mão do sexo, que é algo que proporciona tanto prazer e é tão valorizado. Mas é mais comum do que a gente imagina — afirma Lina Wainberg, terapeuta de casal e família e doutora em Psicologia, que avaliou em sua tese na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a satisfação sexual e a intimidade marital de 800 casais.

Escolha ou problema sexual

A inexistência de atração sexual pode não ser uma simples escolha ou interpretação do que o corpo não consegue sentir. Há enfermidades e disfunções que comprometem a libido — tratáveis, permitem que a pessoa retome ou inicie uma vida sexual saudável.

— A pessoa pode ter vivenciado algo ruim, um abuso, uma repressão, uma decepção erótico-afetiva. Pode ter medo de se comprometer com a intimidade de alguém. Será que ela está, de fato, optando por isso ou escondendo alguma dificuldade? — questiona a terapeuta de casal e família Juliana Garcia.

Na ânsia de encontrar um diagnóstico que justifique a pouca empolgação, não se pode desconsiderar que o que à primeira vista parece problema pode não passar de um descompasso.

— Um casal que transa bastante pode passar por períodos sem sexo devido a problemas ou a outras interferências. O importante é que os dois se satisfaçam —esclarece Juliana.

Elisabete Regina Baptista de Oliveira, pedagoga, trata da assexualidade entre jovens em sua tese de doutorado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP):

— A possibilidade da assexualidade como orientação sexual questiona uma das certezas históricas da ciência: a de que o desejo é universal, todo ser humano tem que sentir ou é necessariamente portador de algum problema. A recente visibilidade dos indivíduos que afirmam não sentir desejo ou atração sexual, sem que isso lhes cause angústia ou desconforto, traz à ciência o desafio de estudar a sexualidade e a assexualidade, a partir de novos paradigmas.

A Asexual Visibility and Education Network (Aven), maior comunidade de assexuais do mundo, foi fundada nos Estados Unidos em 2001 e reúne mais de 30 mil integrantes. Disponibiliza material em 13 idiomas e é referência no tema, o que aumentou o interesse de pesquisadores no exterior na última década. Por aqui, o debate ainda é incipiente.

— Os assexuais brasileiros existem, mas estão confinados às comunidades virtuais, principalmente no Orkut. Ainda não temos um movimento assexual — diz a pesquisadora.

— Assexualidade não é escolha, não é decisão, é um modo de ser. Não diz respeito ao comportamento sexual, mas a uma identidade.

Abdicar o sexo?

Como o movimento ainda se delineia, o ato de assumir-se assexual é corajoso. Vale a comparação:
— Hoje, ser assexual é mais difícil de admitir do que ser homossexual. É abdicar por completo de um prazer. Não é desviar, como alguns acreditam: é abdicar — comenta a terapeuta Lina Wainberg.

— Se isso (o sexo) gera muito mais sofrimento do que prazer, pode ser uma escolha saudável.

Se forem descartadas possíveis enfermidades e alterações hormonais, a psicóloga e terapeuta sexual Lúcia Pesca julga inviável a anulação das sensações que impulsionam a busca da satisfação sexual e tudo que dela decorre.

— É impossível que alguém não tenha uma fantasia. Acho impossível não sentir vontade. Tudo que a gente estuda a vida inteira, neurológica e hormonalmente, não nos deixa explicar isso — protesta Lúcia.

Membros da comunidade quase invisível dos que desprezam os prazeres da carne não deixam de ser espirituosos. Sites internacionais, como o da Aven, comercializam camisetas, canecas, bandeiras — o símbolo do movimento são listras horizontais em
preto, cinza, branco e roxo. "Assexuais se divertem mais" e "Nada de sexo, por favor" estão entre as frases de efeito. Versões adaptadas de sites de namoro propagandeiam a possibilidade de encontrar alguém, apaixonar-se e viver as delícias de um amor... platônico. Cada um na sua, sem chegar muito perto.

"Nos sentimos como ETs"

Comerciante e estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco, Júlio Manoel Neto é uma das raras figuras dispostas a falar abertamente sobre o tema. Soube que era diferente na adolescência, quando não partilhava do interesse dos amigos pela descoberta do sexo. Hoje, aos 20 anos, descobriu que há mais gente que pensa como ele e criou um blog, em que posta reflexões sobre o que chama de "era sexual".

"Sempre pensei diferente das outras pessoas e não via problema no meu desinteresse pelo sexo. O problema é o sentimento de que estamos fora do mundo. Nos sentimos como ETs, com a sensação de que estamos errados. Não imaginava que isso pudesse ser simplesmente normal, como qualquer outra forma de se relacionar. Até que descobri que outras pessoas também pensavam e sentiam como eu. Percebi como é importante discutir esse modelo de sociedade voltado para o culto do sexo.

Como minha opinião foi formada desde cedo e sempre tive certeza de quem sou, nunca me obriguei a fazer sexo somente para satisfazer uma convenção social. Pelo contrário, aprendi a construir relacionamentos sem sexo. Hoje não tenho namoros convencionais, o que não significa que não tenha relacionamentos. Sou livre com minha afetividade. A maior parte dos assexuais, no entanto, faz sexo por não saber que existe a alternativa de, simplesmente, não fazer.

Para tornar isso mais claro para as pessoas e fomentar a discussão, criei o blog e hospedei em um site sobre o tema, feito por uma amiga. Não pregamos bandeiras como a virgindade ou abstinência por questões morais ou religiosas. Simplesmente concordamos que o culto ao sexo que existe atualmente não é o único caminho. É possível, se for a vontade do indivíduo, ver a realidade de uma outra forma, sem a conotação sexual."

Estereótipo premiado

Gênio da física e antissocial orgulhoso, Sheldon Cooper imprime humor ao estereótipo dos assexuados. Personagem que valeu a Jim Parsons o Globo de Ouro deste ano de melhor ator de comédia no seriado The Big Bang Theory, uma das comédias americanas de maior sucesso na atualidade (exibida no Brasil pelo canal a cabo Warner), Sheldon despreza toda forma de interação social afetiva ou sexual, então, nem se fala.

Restringe o convívio aos três amigos mais próximos e à vizinha bonitona, Penny (Kaley Cuoco), a única da turma que não é vidrada em quadrinhos, videogames e fórmulas complexas e vive a lhe despertar suspiros inconformados e olhos revirados em desapontamento.

Ao contrário de Leonard (Johnny Galecki), Howard (Simon Helberg) e Raj (Kunal Nayyar), que tentam furar a barreira que separa o universo geek das simples mortais e ensaiam alguns desastrados flertes, Sheldon não suporta a mais sutil referência a qualquer tipo de contato carnal, de um aperto de mão a — o horror, o horror — um beijo. "Procriação", só se for com uma mãozinha da ciência e da fertilização in vitro, e apenas para perpetuar seu brilhantismo.

O físico inicia um "namoro" com a igualmente enfastiada Amy Farrah Fowler (Mayim Bialik), neurocientista sem o mínimo de feminilidade ou vaidade, que parece ser o seu improvável par perfeito. Ainda que carregado nas tintas de uma deliciosa comédia, o programa encampa a bandeira de quem acha que o mundo é muito mais interessante quando se mantém uma segura e asséptica distância dos outros.
LARISSA ROSO
http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/donna/19,647,3260367,Movimento-assexual-traz-a-tona-outra-forma-de-encarar-o-desejo-fisico.html

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