sexta-feira, 28 de outubro de 2011 | 11:52 | 4 Comentários
Depois de 34 anos da cirurgia, me tornei um transhomem feminino, no sentido do que está palavra pode trazer de tudo de sensível e belo da nossa cultura. Mais que um anti-machista, continuo me permitindo o que muitos homens hetero ainda não conseguem.
Operei-me em 1977, quando as cirurgias eram proibidas e consideradas “mutilação do humano”. Nem na Justiça poderia entrar porque os próprios juízes desconheciam o que era a “transexualidade”. Com os novos documentos que eu próprio tirei, para poder me articular na sociedade, perdi meu histórico escolar. Deixei de ser psicólogo, professor universitário, mestrando, fechei meu consultório e passei a ser um analfabeto.Teria que fazer supletivo do primeiro grau. Para sobreviver acabei sendo pedreiro, vendedor, massagista de shiatsu, artesão, chofer de taxi, etc e acabei escritor.
Aos 37 anos me torno pai não biológico da gravidez da minha mulher. Experiência única e que hoje me sinto extremamente gratificado. Tenho um filho de 24 anos que acaba de se formar engenheiro e que optou por ser hetero. Aos 13 anos contei-lhe a minha história e hoje não temos mais segredos. Somos amigos e confidentes.
Casei 4 vezes em relacionamentos apaixonados e duradouros. Hoje estou a 15 anos com a mesma mulher, numa relação madura e companheira.
Quando eu nasci em 1950 é que foi criado o termo transexualismo, desconhecido no Brasil. Também não me sentia um homossexual e sabia que não era um caso de intersexo. Vivi por quase 10 anos uma dupla identidade social, Era mulher na família, na faculdade e trabalho e homem com os desconhecidos.
Hoje, como transexual masculino ou transhomem sou pela DSM IV (Manual Diagnóstico e Estatístico das Desordens Mentais) um desordenado na minha identidade de gênero. A Medicina me considera um doente mental, cuja cura não está na terapia (já que esta é comprovadamente inoperante para os trans) mas no físico, na cirurgia transgenital. Desconhecem que há trans que não querem se operar ou que se tornaram trans-homo, trans-bi, etc.
A França foi o primeiro país a despatologizar o transexualismo, mas ainda não deu respaldo para efetivar que os trans tenham acesso a todos os seus direitos civis, como freqüentar banheiros públicos se só existem os femininos ou masculinos, muitas vezes sem reservados (na Austrália já começaram a experimentar um terceiro tipo). Em que enfermaria seremos socorridos se só há “patinhos” e “comadres”?
Não terminei as cirurgias de redesignação sexual, como faz a maioria, por serem ainda terem um resultado muito precário. A partir de 1997 tornaram-se legais e gratuitas pelo SUS, mas para F to M (fêmea para macho) são ainda consideradas “experimentais”.
Hoje aos 61 anos me tornei um cara tranqüilo e aprendi a me bastar com o que tenho. E satisfeito comigo Continuo uma cobaia da ciência, na medida que entro na menopausa aos 27 anos e em vez de estrogênio, tomo testosterona. Nenhum médico pode me afiançar o que acontecerá comigo. Não há ainda tempo hábil para uma avaliação estatística, Só sabem que a testosterona me evita a osteoporose e aumenta meu colesterol e só desconfiam que ela possa ser a responsável pelo reumatismo sistêmico que me toma. Brinco, dizendo que economizei cirurgias para gastá-las agora na velhice. Botei 3 próteses (uma na coluna e duas no quadril, o que me rendeu, 20 dias depois, também um infarto em setembro último).
Enfrento agora este segundo inimigo, a que todos nós estamos sujeitos: a velhice, que prá mim novamente, torna meu corpo um obstáculo em vez de um instrumento do desejo, mas com o consolo que ainda estou vivo.
Resolvi escrever então um livro autobiográfico - “Viagem Solitária”, Ed. Leya, não só para descurtinar o que é o desencontro da identidade sexual com a anatonia corporal, como para desmistificar alguns valores que a nossa cultura coloca como categóricos, quase “naturais”. E para ter crédito, resolvi sair do “armário”.
Mostrar a cara na mídia
Não tenho mais dúvidas de que ser “homem” não é ter um pênis ou mais que isso, não é ter uma configuração masculina, o mesmo valendo para a “mulher”. Sexo e gênero são coisas bem distintas, quase mesmo “imaginários” sociais.
Minha luta hoje é contra o heterocentrismo, esse binarismo onde só existe homem e mulher. Muitos ainda não querem ver a multiplicidade de corpos, de transidentidades sexuais, quase infinitas, que existem. Seríamos os “queer”,os “híbridos”, os trangêneros, que transcedem os valores e esquemas padronizados dentro de rótulos hoje aceitos. E por sermos múltiplos, enriquecemos e ameaçamos às sociedades patriarcais, pautadas nos cisgêneros (do latim cis = do mesmo lado) aqueles cujaidentidade de gênero está em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, os ditos normais - os heterossexuais.
A luta tem que continuar e avançamos lentamente, mas ainda falta muito para conserguirmos pelo menos a aprovação do PLS 612/11, que está em tramitação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), que altera o Código Civil e modifica interpretações que impedem a transformação da união estável em casamento.
Veja toda Entrevista feita recentemente no De Frente com Gabi:
Entrevista com João W. Nery - Parte 1
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