Mulheres ofendidas contam o que acontece quando os homens pensam que a roupa é um convite
18.07.2011 | Texto por
Fotos
Victor Affaro
Viviane Favery, 25 anos, publicitária. Adora minissaias e calças justas, mas não usa com frequência porque não gosta de ser encarada nas ruas. “Acho invasivo aquele olhar de cão faminto que os homens dirigem a você”
Quando trabalhou como promotora num evento em São Paulo, a jornalista Simone Grazielle, 30 anos, chegou a ouvir mais de uma vez, de mais de um homem: “Quanto você cobra?”. Vestia short e bota e tinha caprichado na maquiagem. Ela, no entanto, não ficou chocada – como usa frequentemente roupa curta e decote, inclusive na produtora onde trabalha, está acostumada a esse tipo de abordagem. “Se a mulher é muito exuberante, os homens acham que ela é puta”, resume Simone.
Assim como ela, outras mulheres que não se vestem de maneira sensual com o intuito de atrair a atenção da ala masculina – e sim porque gostam – têm de escutar cantadas desrespeitosas e acabam sendo rotuladas, entre outros insultos, de “vaca” e “vadia”. Em casos extremos, são agredidas fisicamente e vítimas de abuso sexual . A justificativa para muitos dos casos de violência física ou moral continua sendo a de que a mulher não deveria sair por aí exibindo o corpo. Ou seja: a culpa é dela.
E esse assunto, que parece bobo (mas não é) acaba de entrar na ordem do dia. Mulheres do mundo inteiro se rebelaram contra as agressões morais e físicas e organizaram a Marcha das Vadias (ou Slut Walk) em dezenas de cidades, como São Paulo, Nova York e Londres. Nessas passeatas, saíram às ruas com roupas provocantes e carregando cartazes com frases como: “Eu me visto para mim, não para você”.
Mas, enquanto as coisas não mudam, a solução encontrada por Simone para se esquivar das perguntas constrangedoras foi investir em respostas bem-humoradas, como “o estilo Bruna Surfistinha está na moda”. Em outra ocasião, estava na sala VIP de um aeroporto e ouviu de duas senhoras que era inadmissível “uma dama de companhia ocupar o mesmo espaço que elas”. Simone explicou educadamente que se sentia bonita daquele jeito e alfinetou: “Se fosse uma dama de companhia não precisaria trabalhar tanto como jornalista”.
Cão faminto
Nem todas conseguem reagir como Simone. A publicitária Viviane Favery, 25 anos, evita usar minissaia porque não gosta de ser abordada o tempo todo. “Acho invasivo aquele olhar de cão faminto que os homens dirigem a você. Não sou uma amostra grátis”, discursa. Ela diz que usaria mais calças justas e minissaias se não tivesse de lidar exaustivamente com olhares gulosos, mas garante não ligar para julgamentos morais. “O olhar é problema meu porque me traz desconforto imediato. Mas o julgamento, bom, é problema de quem julga.”
Foi quando usava uma saia que a produtora cultural Paula Chang, 26 anos, sofreu um assédio sexual e uma agressão física no metrô de Paris. Saindo de um bar, ela desceu até uma estação com amigos e cada um seguiu seu caminho. Nessa hora, um homem se aproximou e enfiou a mão por dentro de sua saia. Ela o empurrou e ele reagiu com um soco. No dia seguinte, Paula deu queixa na polícia parisiense e meses depois foi chamada para prestar depoimento.
Chegou a assistir ao vídeo que registrava o momento do assédio e olhou fotos do suposto agressor, mas não o reconheceu. “Fiquei um bom tempo traumatizada, com medo de sair às ruas. Aos pouquinhos fui me recuperando”, conta.
Ela lembra que, quando narrava a história a conhecidos, justificava: “Estava de casaco de inverno e a saia nem era muito curta”. Até que uma amiga a fez perceber que aquela era uma maneira de ela se isentar da culpa da agressão: “Mesmo que estivesse com uma saia curtíssima ninguém tem o direito de assediá-la”.
Vai sair assim?
Esse sentimento de culpa existe porque durante muito tempo o estupro era “justificável” se a mulher usasse roupas que atiçassem a libido masculina. “Até que o movimento feminista mostrou que crianças, freiras de hábitos e mulheres idosas com roupas convencionais também eram estupradas”, explica a socióloga Eva Blay, integrante do Nemge (Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero), da USP.
Foi a declaração de um policial numa universidade de Toronto, no Canadá, seguindo esta linha de raciocínio, que causou revolta e inspirou a criação da Marcha das Vadias, na mesma cidade, em abril passado. Ele afirmou que as estudantes deveriam evitar “se vestir como vagabundas” se não quisessem se tornar alvo de estupros.
No Brasil, o movimento passou por capitais como Brasília e Recife. E insurgiu contra personalidades como Rafinha Bastos, do programa CQC, que afirmou à revista Rolling Stone: “Toda mulher que vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho; tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus”. Também foi lembrado na marcha o caso Geisy Arruda – a garota que foi alvo de agressões verbais na Uniban, em 2009, por comparecer às aulas usando um vestido curto e justo. Acabou sendo expulsa da instituição por “desrespeitar princípios éticos, a dignidade acadêmica e a moralidade”.
As frases expostas em cartazes na Marcha das Vadias, em São Paulo, inspiraram um texto do colunista da Folha de S.Paulo Marcelo Coelho, que se mostrou especialmente tocado por uma delas: Acredite ou não, minha saia curta não tem NADA a ver com você. A respeito disso, refletiu: “‘Se elas se vestem assim, como é que não querem que eu me interesse?’. Mas a ficha, ao cair, deu sua resposta a essa questão. Há muitas razões, fiquei pensando, para uma mulher usar uma minissaia espetacular. (…) Acontece que o ‘machão’, ou, arriscome a dizer, a maioria dos homens, sentese pessoalmente interpelado pela minissaia da mulher belíssima. ‘É comigo’, pensa ele. ‘Afinal, não sou o centro do mundo?’”.
Lola Aronovich, 43 anos, autora de um dos blogs feministas mais conhecidos do país (escrevalolaescreva.blogspot.com), foi à marcha em Belo Horizonte e opina: “A gente ouve isto toda hora: ‘É a mulher que tem que aprender a não ser estuprada, não o homem que tem que aprender a não estuprar’. Quando alguém fala em estupro, a primeira coisa que se pergunta é: ‘Mas o que ela estava vestindo, onde ela estava, que horas eram?’”.
A jornalista Simone Grazielle afirma já ter ouvido diversas vezes, da boca de mulheres: “Vai sair assim? Depois é estuprada e reclama”. Ela se revolta: “Quem disse que eu estar andando ‘pelada’ justifica o estupro, a invasão, o desrespeito?”. E diz mais: “Acho que são aquelas pessoas que têm vontade de usar, mas não usam. Seja por falta de coragem, por não combinar com seu estilo ou por não saber como reagir aos comentários”. Segundo a publicitária Viviane Favery, os olhares preconceituosos das mulheres podem ser tão ou mais incômodos do que os dos homens.
Ainda hoje muitas mulheres crescem em famílias “tradicionais” (e tradição, aqui, é no sentido careta mesmo) em que a mãe recomenda à filha que não use roupas curtas ou decotadas se não quiser ser cobiçada.
Não é o caso da família da fotógrafa Nathalie Gingold, 27 anos, porém ela relaciona o fato de nunca ter contado aos pais sobre o assédio que sofreu aos 12 anos à culpa que carregou durante a infância. A caminho da padaria, à luz do dia, um homem parou Nathalie dizendo obscenidades e se masturbando. “Achei que a culpa era minha e decidi usar, a partir de então, somente roupas largas que escondessem meu corpo. Tinha pavor que mexessem comigo de novo. Hoje percebo como foi triste esse episódio, porque durante anos não pude mostrar minha feminilidade com medo de olhares, gestos e palavrões”, relata.
“Piranha”
É na infância que a mulher geralmente tem o primeiro contato com agressões verbais, em rótulos dados por colegas da escola, como “piranha”. E não só por consequência das roupas. Mas também por beijar mais de um menino da turma – porém ao se negar a ficar com algum é provável que também seja xingada. Caso não vivencie situações como essas quando criança, durante a adolescência essas questões se renovam e ganham força. “Será que se eu transar no primeiro encontro ele vai me achar uma ‘vadia’? E se eu vestir uma calcinha fio dental, ele vai pensar que sou dada?” A impressão é de que a sexualidade da mulher não a pertence até o momento em que ela decide, finalmente, se apropriar dela.
Não é fácil. Se o ambiente continua predominantemente machista, o jeito é se preparar para as inevitáveis reações machistas. E, enquanto elas estiverem por aí, não há o que fazer a não ser lidar com elas. A psicóloga Luciana Comparato dá algumas pistas: “Se a mulher expõe algo que culturalmente
não é exposto nas ruas, se ela tem prazer em usar um decote maior ou uma minissaia que mostre o que as pessoas não estão acostumadas a ver, ela tem que estar pronta para receber tanto elogios como ofensas”.
E é o que Simone Grazielle faz na prática. Ela respondia o seguinte aos homens que a abordavam no tal evento, supondo que fazia programas: “Terei de recusar seu convite porque só estou aqui para conseguir pagar minha faculdade. Minha roupa é curta, mas isso é só um detalhe. Isso não diz o que eu sou, quero e tenho, não expressa meus valores nem mede a minha inteligência”.
Assim como ela, outras mulheres que não se vestem de maneira sensual com o intuito de atrair a atenção da ala masculina – e sim porque gostam – têm de escutar cantadas desrespeitosas e acabam sendo rotuladas, entre outros insultos, de “vaca” e “vadia”. Em casos extremos, são agredidas fisicamente e vítimas de abuso sexual . A justificativa para muitos dos casos de violência física ou moral continua sendo a de que a mulher não deveria sair por aí exibindo o corpo. Ou seja: a culpa é dela.
E esse assunto, que parece bobo (mas não é) acaba de entrar na ordem do dia. Mulheres do mundo inteiro se rebelaram contra as agressões morais e físicas e organizaram a Marcha das Vadias (ou Slut Walk) em dezenas de cidades, como São Paulo, Nova York e Londres. Nessas passeatas, saíram às ruas com roupas provocantes e carregando cartazes com frases como: “Eu me visto para mim, não para você”.
Mas, enquanto as coisas não mudam, a solução encontrada por Simone para se esquivar das perguntas constrangedoras foi investir em respostas bem-humoradas, como “o estilo Bruna Surfistinha está na moda”. Em outra ocasião, estava na sala VIP de um aeroporto e ouviu de duas senhoras que era inadmissível “uma dama de companhia ocupar o mesmo espaço que elas”. Simone explicou educadamente que se sentia bonita daquele jeito e alfinetou: “Se fosse uma dama de companhia não precisaria trabalhar tanto como jornalista”.
Cão faminto
Nem todas conseguem reagir como Simone. A publicitária Viviane Favery, 25 anos, evita usar minissaia porque não gosta de ser abordada o tempo todo. “Acho invasivo aquele olhar de cão faminto que os homens dirigem a você. Não sou uma amostra grátis”, discursa. Ela diz que usaria mais calças justas e minissaias se não tivesse de lidar exaustivamente com olhares gulosos, mas garante não ligar para julgamentos morais. “O olhar é problema meu porque me traz desconforto imediato. Mas o julgamento, bom, é problema de quem julga.”
Foi quando usava uma saia que a produtora cultural Paula Chang, 26 anos, sofreu um assédio sexual e uma agressão física no metrô de Paris. Saindo de um bar, ela desceu até uma estação com amigos e cada um seguiu seu caminho. Nessa hora, um homem se aproximou e enfiou a mão por dentro de sua saia. Ela o empurrou e ele reagiu com um soco. No dia seguinte, Paula deu queixa na polícia parisiense e meses depois foi chamada para prestar depoimento.
Chegou a assistir ao vídeo que registrava o momento do assédio e olhou fotos do suposto agressor, mas não o reconheceu. “Fiquei um bom tempo traumatizada, com medo de sair às ruas. Aos pouquinhos fui me recuperando”, conta.
Ela lembra que, quando narrava a história a conhecidos, justificava: “Estava de casaco de inverno e a saia nem era muito curta”. Até que uma amiga a fez perceber que aquela era uma maneira de ela se isentar da culpa da agressão: “Mesmo que estivesse com uma saia curtíssima ninguém tem o direito de assediá-la”.
Vai sair assim?
Esse sentimento de culpa existe porque durante muito tempo o estupro era “justificável” se a mulher usasse roupas que atiçassem a libido masculina. “Até que o movimento feminista mostrou que crianças, freiras de hábitos e mulheres idosas com roupas convencionais também eram estupradas”, explica a socióloga Eva Blay, integrante do Nemge (Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero), da USP.
Foi a declaração de um policial numa universidade de Toronto, no Canadá, seguindo esta linha de raciocínio, que causou revolta e inspirou a criação da Marcha das Vadias, na mesma cidade, em abril passado. Ele afirmou que as estudantes deveriam evitar “se vestir como vagabundas” se não quisessem se tornar alvo de estupros.
No Brasil, o movimento passou por capitais como Brasília e Recife. E insurgiu contra personalidades como Rafinha Bastos, do programa CQC, que afirmou à revista Rolling Stone: “Toda mulher que vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho; tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus”. Também foi lembrado na marcha o caso Geisy Arruda – a garota que foi alvo de agressões verbais na Uniban, em 2009, por comparecer às aulas usando um vestido curto e justo. Acabou sendo expulsa da instituição por “desrespeitar princípios éticos, a dignidade acadêmica e a moralidade”.
As frases expostas em cartazes na Marcha das Vadias, em São Paulo, inspiraram um texto do colunista da Folha de S.Paulo Marcelo Coelho, que se mostrou especialmente tocado por uma delas: Acredite ou não, minha saia curta não tem NADA a ver com você. A respeito disso, refletiu: “‘Se elas se vestem assim, como é que não querem que eu me interesse?’. Mas a ficha, ao cair, deu sua resposta a essa questão. Há muitas razões, fiquei pensando, para uma mulher usar uma minissaia espetacular. (…) Acontece que o ‘machão’, ou, arriscome a dizer, a maioria dos homens, sentese pessoalmente interpelado pela minissaia da mulher belíssima. ‘É comigo’, pensa ele. ‘Afinal, não sou o centro do mundo?’”.
Lola Aronovich, 43 anos, autora de um dos blogs feministas mais conhecidos do país (escrevalolaescreva.blogspot.com), foi à marcha em Belo Horizonte e opina: “A gente ouve isto toda hora: ‘É a mulher que tem que aprender a não ser estuprada, não o homem que tem que aprender a não estuprar’. Quando alguém fala em estupro, a primeira coisa que se pergunta é: ‘Mas o que ela estava vestindo, onde ela estava, que horas eram?’”.
A jornalista Simone Grazielle afirma já ter ouvido diversas vezes, da boca de mulheres: “Vai sair assim? Depois é estuprada e reclama”. Ela se revolta: “Quem disse que eu estar andando ‘pelada’ justifica o estupro, a invasão, o desrespeito?”. E diz mais: “Acho que são aquelas pessoas que têm vontade de usar, mas não usam. Seja por falta de coragem, por não combinar com seu estilo ou por não saber como reagir aos comentários”. Segundo a publicitária Viviane Favery, os olhares preconceituosos das mulheres podem ser tão ou mais incômodos do que os dos homens.
Ainda hoje muitas mulheres crescem em famílias “tradicionais” (e tradição, aqui, é no sentido careta mesmo) em que a mãe recomenda à filha que não use roupas curtas ou decotadas se não quiser ser cobiçada.
Não é o caso da família da fotógrafa Nathalie Gingold, 27 anos, porém ela relaciona o fato de nunca ter contado aos pais sobre o assédio que sofreu aos 12 anos à culpa que carregou durante a infância. A caminho da padaria, à luz do dia, um homem parou Nathalie dizendo obscenidades e se masturbando. “Achei que a culpa era minha e decidi usar, a partir de então, somente roupas largas que escondessem meu corpo. Tinha pavor que mexessem comigo de novo. Hoje percebo como foi triste esse episódio, porque durante anos não pude mostrar minha feminilidade com medo de olhares, gestos e palavrões”, relata.
“Piranha”
É na infância que a mulher geralmente tem o primeiro contato com agressões verbais, em rótulos dados por colegas da escola, como “piranha”. E não só por consequência das roupas. Mas também por beijar mais de um menino da turma – porém ao se negar a ficar com algum é provável que também seja xingada. Caso não vivencie situações como essas quando criança, durante a adolescência essas questões se renovam e ganham força. “Será que se eu transar no primeiro encontro ele vai me achar uma ‘vadia’? E se eu vestir uma calcinha fio dental, ele vai pensar que sou dada?” A impressão é de que a sexualidade da mulher não a pertence até o momento em que ela decide, finalmente, se apropriar dela.
Não é fácil. Se o ambiente continua predominantemente machista, o jeito é se preparar para as inevitáveis reações machistas. E, enquanto elas estiverem por aí, não há o que fazer a não ser lidar com elas. A psicóloga Luciana Comparato dá algumas pistas: “Se a mulher expõe algo que culturalmente
não é exposto nas ruas, se ela tem prazer em usar um decote maior ou uma minissaia que mostre o que as pessoas não estão acostumadas a ver, ela tem que estar pronta para receber tanto elogios como ofensas”.
E é o que Simone Grazielle faz na prática. Ela respondia o seguinte aos homens que a abordavam no tal evento, supondo que fazia programas: “Terei de recusar seu convite porque só estou aqui para conseguir pagar minha faculdade. Minha roupa é curta, mas isso é só um detalhe. Isso não diz o que eu sou, quero e tenho, não expressa meus valores nem mede a minha inteligência”.
http://revistatpm.uol.com.br/revista/111/reportagens/vadia-eu.html
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