quarta-feira, 15 de junho de 2011

"Quem se importa com a velhice das travestis?"

"Quem se importa com a velhice das travestis?"
Pedro Sammarco |
Há padrões estabelecidos que respondem a uma determinada forma de organização econômica e social. O que nos importa é saber qual é o impacto que as normas de gênero têm sobre as travestis que atravessam a vida e atingem a velhice.

Seus corpos foram apropriados pelos saberes religiosos, jurídicos e científicos determinando como eles deveriam se comportar. Ao invés de viver o que pode um corpo, são pressionadas a viver o que “deve” um corpo. O trajeto que descreverei não tem a intenção de estabelecer uma regra. No entanto, diante da bibliografia especializada consultada e dos relatos obtidos, pôde-se perceber que os percursos e a dificuldades enfrentadas são parecidas para a grande maioria delas.

Desde pequenas começam a perceber que não estão em um bom encontro em relação ao que é estabelecido. Conforme dados levantados e presentes em diversas passagens dessa dissertação, a exclusão da travesti já começa na família, justamente por não se adequarem as regras sociais. Podem até mesmo sofrer violência por parte de seus familiares.

Acontece um mau encontro que diminui sua potência de agir. O próximo desafio vem na escola. O nome social que elas desejam usar combinado com a aparência são elementos para que sejam rechaçadas na escola, tanto pelos colegas como professores e demais funcionários. Muitas relatam que por causa disso, não conseguem terminar os estudos.

Ao mesmo tempo, saem de casa ou são expulsas, encontrando nas travestis mais velhas a referência para construir seu modo próprio de ser. Travestis mais experientes terão um papel importante na vida das mais novas. Ajudarão a construir os novos corpos, estilos de vestir e formas de ser das novas travestis.

Devido à dificuldade de encontrar um emprego, por causa da aparência, aliada a baixa escolaridade, acabam se prostituindo para sobreviver. Precisam modelar seus corpos de forma quase que clandestina e arriscada, pois não contam com políticas públicas de saúde que as amparem. Isso exige altos investimentos, pois quanto menos considerado ambíguo e atraente for o corpo, menos discriminação e maiores os ganhos financeiros.

A condição de seres patológicos que são colocadas facilita que a sociedade não as veja como humanas e sim como seres abjetas. Em sua maioria, são consideradas aberrações, sujeitas a tratamento, punição ou até mesmo extermínio. Desde cedo seu drama como não humanas já começa e se arrasta até quando conseguirem sobreviver.

As que conseguiram driblar os riscos inerentes ao contexto existencial de marginalidade, precisam adotar estratégias. Para isso, seguem um estilo próprio de existir. Não há como generalizar sua forma de lidar com as adversidades da vida. Cada uma terá seu jeito próprio. Além de ter sobrevivido, chegar à velhice é também sinônimo de referência, exemplo e alerta para as mais jovens.

Ser travesti na atualidade não é o mesmo que ter sido travesti antes da década de 1960. Se um homem saísse na rua vestido de mulher, geralmente era preso. Não havia hormônios nem silicone. Porém, mesmo assim, muitas podiam ser travestis durante os bailes de carnaval. Outras se tornavam artistas, o que possibilitava que pudessem ser mais travestis em um contexto de artes cênicas. As prostituições eram veladas e sutis, conforme acompanhamos nos relatos de vida de duas de nossas entrevistadas.

Após as revoluções sexuais ocorridas no final do século XX no mundo, os conceitos de família e gênero sofreram profundas transformações. A travesti passou a ter mais espaço. Saiu da clandestinidade e começou a se prostituir nas ruas dos grandes centros urbanos. Assim como os jogadores de futebol, muitas saíram de contextos socioeconômicos mais humildes. Como prostitutas, galgaram espaço nos grandes centros até chegarem ao exterior. Lá, precisavam ganhar muito dinheiro em curto espaço de tempo, para que pudessem ter um futuro.

Quando não pudessem mais viver do corpo, já seriam consideradas velhas. Para as travestis o conceito de velhice está vinculado ao trabalho que desempenham como prostitutas. Enquanto trabalham são úteis, produtivas e, portanto jovens.

Conhecer suas trajetórias de vida possibilita identificar quais são os pontos mais críticos onde não há qualquer amparo existencial. Elas são grandes improvisadoras, visto que não são reconhecidas como pessoas humanas. Precisam inventar suas vidas de forma original. Como não “existem” perante a lei, estão sujeitas a todo tipo de violência e aniquilamento. Quem as defenderá?

É preciso haver políticas públicas que as amparem, começando pela família e escola. Depois necessitarão de políticas de saúde que as auxiliem em seus processos de transformação corporal para que não tenham que se arriscar clandestinamente com silicone industrial e ingestão hormonal desregrada. Em seguida está outro grande desafio: sua profissão e meio de sobrevivência. Ocupações onde não precisem se arriscar a doenças e violências. E que se assim for, que seja por escolha e não por ser a única forma de sobreviver.

Por fim, as políticas públicas continuarão amparando suas velhices, pois se adequarão às necessidades especificas de cada travesti que envelhece. Embora sujeitas aos mecanismos de controle, as políticas públicas dão reconhecimento e condição de existência para as travestis.

Existir por meio de políticas públicas, as retira da situação de marginalidade e violência. Alegam que muitas vezes são violentas, para se defender da violência que sofrem por serem invisíveis.

Vemos que o assunto é muito complexo e que há muito ainda o que ser feito. Estou satisfeito com os resultados desse estudo, pois o primeiro passo já foi dado: começar a conhecer quem elas são. Trazendo-as a visibilidade, teremos melhores condições de traçar políticas específicas que as amparem desde tenra idade. Convido todos os pesquisadores interessados nesse assunto a continuar esse trabalho gratificante e desafiador.
http://www.vidag.com.br/sao-paulo/destaques/pedro-sammarco--quem-se-importa-com-a-velhice-das-travestis/

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