quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Casamento e homofobia: as torções do direito e os mastros da democracia

Casamento e homofobia: as torções do direito e os mastros da democracia

por Pádua Fernandes

O que irrompe quando juristas que costumam manter uma linha de argumentação racional, mesmo em seus erros, dão nós na razão e embaraçam-se nos fios torcidos? Que sentimentos entram em jogo sob o disfarce, no direito, da teoria constitucional?
Trata-se do instituto jurídico do casamento civil; ele deve permanecer um privilégio de certos casais ou não? Esses privilégios, muitas vezes de origem religiosa, vedaram a legitimação jurídica de uniões inter-raciais, de pessoas de religiões diversas, de castas diferentes – e de mesmo sexo.
Em países teocráticos, esse instituto simplesmente não existe. Porém, nos países que desenvolveram essa importante conquista para a pluralidade, o casamento civil, os argumentos para mantê-lo como privilégio de casais de sexo diferente encontram dificuldade de esconder sua origem em preconceitos religiosos – e, portanto, contrários ao espírito do direito de uma sociedade em que Estado e religião estão separados.
Qualquer direito que se assuma como religioso assume, só por essa razão, um caráter excludente, o que o torna dificilmente compatível com a democracia. É democrático que as pessoas tenham o direito de adotar uma religião; o Estado é que não deve fazê-lo.
A importância histórica dos Estados Unidos da América para o constitucionalismo é inegável. No entanto, Eve Kosofsky Sedgwick, em Epistemologia do Armário, bem pôde indicar, entre as diversas incongruências dos discursos sobre o gênero, a incoerência do Judiciário daquele país, a Suprema Corte inclusive, que legitima a vedação do acesso de homossexuais a certos empregos. Um professor de geografia do oitavo ano em Maryland, Joe Acanfora, havia sido afastado de suas funções docentes quando se descobriu que era homossexual. Inconformado, o professor chegou a ir à tevê e, com isso, foi definitivamente excluído. O tribunal considerou legal a demissão sob o argumento de ele ter divulgado sua própria sexualidade – o que atrapalharia o processo pedagógico!
O professor apelou. O tribunal superior, no entanto, ratificou a decisão com outro argumento: Acanfora não havia mencionado, no pedido de emprego, que havia sido membro de uma organização sexual na universidade. Se tivesse dado a informação, não teria sido contratado… A demissão, pois, era perfeitamente legal. A Suprema Corte, por sua vez, rejeitou a demanda de Acanfora, que perdeu o caso sob o argumento de que divulgou sua sexualidade e, depois, sob o argumento de que a ocultou. Tratava-se de “uma revelação simultaneamente obrigatória e proibida”, escreveu Sedgwick. Não havia como ganhar a causa.
A autora afirmou, porém, que os tribunais distinguiram entre a homossexualidade do professor, e a maneira inadequada com que teria divulgado sua “condição”; a homossexualidade, por si só, não teria sido o motivo da demissão. Creio que ela está equivocada nesse ponto: a escola não o teria contratado se soubesse que ele era homossexual e essa discriminação, fundada tão só em sua sexualidade, em vez de ter sido considerada inconstitucional, foi julgada legítima. Se não faz diferença, juridicamente, ocultar ou revelar certa condição, é porque ela constitui o problema, e não o seu ocultamento ou revelação.
Creio, pois, correta a National Education Association que, em declaração de 30 de setembro de 2009 sobre proibição de discriminação no emprego, citou o caso de Acanfora como exemplo de discriminação por motivo da sexualidade. Nos EUA, “legislação apropriada é extremamente necessária, não legislação que crie ‘direitos especiais’, e sim que crie ‘direitos iguais’ para que empregados LGBT fiquem livres de discriminação.”
Trata-se mesmo do nó da questão: como um ordenamento jurídico que apresente, em seus princípios gerais, o da igualdade, pode ser usado para legitimar a discriminação de homossexuais? Tortuosidades argumentativas e hermenêuticas costumam aparecer – afinal, como conciliar aquele princípio de origem iluminista com os preconceitos inspirados em livro religioso milenar? Há quem o faça, mas não são os ortodoxos.
O caráter abstrato desse princípio permite-lhe ser historicamente moldável e abrigar causas que não foram pensadas em 1789, mas que hoje são prementes, como o da união entre pessoas de mesmo sexo; como escrevi em meu livro Para que servem os direitos humanos?, trata-se da capacidade histórica dos direitos humanos de se transformarem sem a necessidade de alterações jurídicas formais.
Mais um exemplo de tortuosidade jurídica: o casamento deixou de ser um privilégio heterossexual em Portugal (assim como na Espanha, outro país católico). O jurista Carlos Pamplona Côrte-Real, em parecer de 2007, lucidamente apontou os extravios metodológicos de certos constitucionalistas lusitanos (entre eles, Canotilho e Jorge Miranda) que consideravam constitucional a proibição do código civil português de que homossexuais casassem. Para legitimar a vedação no código, inexistente no texto constitucional, eles interpretavam a Constituição de acordo com a legislação civil, invertendo a hierarquia das normas: a Constituição é que deveria, segundo as noções básicas, comezinhas da teoria do direito, servir de parâmetro normativo. Canotilho e Vital Moreira chegam ao extremo de dizer que o direito ao casamento seria “neutro” em relação ao recorte hetero ou homossexual. Pamplona Côrte-Real, muito cortês, não faz a indagação, mas seria de perguntar se aqueles constitucionalistas veria algum problema jurídico, em termos de direitos humanos, se o legislador vedasse o casamento entre pessoas de sexo diferente…
O parecer ataca o apriorismo na argumentação desses juristas ao tomarem o modelo do matrimônio católico como pressuposto do casamento civil, e vincula as inconsistências resultantes a um preconceito homofóbico.
Com efeito, esse tipo de repulsa é evidente nos argumentos de que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo abriria portas para poligâmicos, incestuosos etc. Algo de semelhante pode ser lido no parágrafo 24 da Metafísica dos Costumes de Kant, em que o filósofo alemão compara a união entre seres humanos do mesmo sexo com a zoofilia sem apresentar razões para essa analogia, no mínimo esdrúxula para seres racionais. De fato, não era necessário para o leitor da época, apresentá-las: eram os preconceitos religiosos que irrompiam no discurso jurídico-moral kantiano e faziam-no comparar pessoas que amavam outras do mesmo sexo com seres irracionais, negando-lhes a dignidade humana.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil adotou linha de pensamento parecida em curiosa intervenção nas ações que o Supremo Tribunal Federal julgou sobre a extensão da união civil aos casais homossexuais (escrevi sobre essas ações julgadas pelo STF aqui e aqui. É interessante notar que a CNBB, nesse julgamento, foi a única entidade que comungou do entendimento de uma associação filo-nazista, que também se manifestou, nos autos e na sustentação oral, contrária ao reconhecimento jurídico das uniões entre homossexuais). Argumentos como esses já foram usados para a proibição do casamento entre pessoas de raças diferentes, como bem lembram, entre outros, os juristas Luís Duarte d’Almeida e William Eskridge Jr.
Este último jurista, estadunidense, realizou importantes pesquisas sobre o ativismo judicial dos movimentos sociais nos EUA, analisando as derrotas e vitórias desses movimentos no Judiciário. Em livro recente, lembrou que um clássico do pensamento jurídico, Jeremy Bentham (1748-1832), escreveu contra a perseguição de homossexuais em textos que ficaram inéditos (o filósofo temeu que o público não os aceitasse) até a segunda metade do século XX.
É realmente interessante lembrar de Bentham – um adversário do Iluminismo – neste debate. O filósofo utilitarista considerava que estávamos sob o império de dois princípios: a dor e o prazer. Útil seria toda lei que aumentasse o prazer e diminuísse a dor. Com esse fundamento, ele criticava toda lei que impusesse o ascetismo, bem como as leis de “antipatia”, isto é, as que se fundamentassem na repulsa a um grupo.
Leis de antipatia? Trata-se exatamente da questão da homofobia. E também do ascetismo, quando se defende que os homossexuais não precisam ser eliminados, mas não devem realizar-se afetivamente. Contudo, o que pode trazer de maléfico para os casais de sexo diferente que os outros casais também possam legalmente casar-se? Cito Bentham:
Permanecem, portanto, duas fontes, e não mais do que duas, das quais a soma de felicidade tomada em todas suas formas pode aumentar: uma é a diminuição do montante de dores; a outra é a remoção dos obstáculos que o erro e o preconceito opuseram ao aumento do estoque de prazeres que toda pessoa (homem ou mulher) tem em seu próprio poder.
Ele, em nome do princípio da utilidade, condenou a perseguição aos homossexuais (fora um iluminista, poderia tê-lo feito com base na dignidade), pois ela aumenta o montante de dor na sociedade, com a perseguição a essas pessoas – que não causam, com seu comportamento, dor ao restante da sociedade. Bentham recordou dos variados exemplos clássicos de amor viril (Virgílio, Suetônio, Alexandre o Grande…) e escreveu que não se pode condenar esse amor com base nas palavras de Jesus, pois o “advogado da adúltera” jamais o censurara, no que teria sido muito diferente do ascetismo legiferante de Moisés e de Paulo.
Com base no pensamento utilitarista, poderíamos até mesmo argumentar, em favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que, além de aumentar o prazer entre essas pessoas, ele tem como efeito diminuir a dor entre os heterossexuais, que deixarão de ser enganados por homossexuais que pretendem esconder sua orientação sexual em uniões de conveniência.
De fato, estamos em um campo em que os princípios da dignidade e o da utilidade convergem. Adversários de ambos, claro, defenderão outras posições. Exemplo recentíssimo, no Brasil, foi o de uma casa de legisladores municipais, antes conhecida somente pelos numerosos casos de corrupção que envolveram seus membros e por sua morosidade legislativa. Na atual legislatura, marcou-se também pela descoberta do patrocínio de vários de seus membros pelas empresas imobiliárias, interessadas em desfigurar o plano diretor, bem como em verticalizar e poluir ainda mais a cidade.
Essa casa, atuando como improvável pilar da moralidade nacional, resolveu em agosto de 2011 criar o “dia do orgulho hétero”, que ainda não foi sancionado ou vetado pelo prefeito. O apóstolo da medida justificou-se, afirmando em artigo na Folha de S. Paulo querer discutir os supostos privilégios dos homossexuais na sociedade brasileira. Escreveu: “Vejo nas novelas e na imprensa um tratamento especial dos gays.” De fato, o tratamento é especial, porém negativo: os únicos casais que não podem se beijar são os de pessoas do mesmo sexo.
Em seu arrazoado, menciona algo inexistente, num falso paralelismo com a homofobia: a “heterofobia”. Heterossexuais não são demitidos, espancados ou mortos pelo simples fato de sua orientação sexual – isso ocorre com os homossexuais. É ridículo tentar negar esse dado óbvio da realidade, mas alguns fazem do ridículo sua missão. O autor do projeto aprovado chegou ao ponto de criticar, em frase cujo óbvio símbolo fálico sugere a conveniência de consultar o psicanalista, “os intocáveis que hasteiam a bandeira gay e que quebram o mastro da bandeira da democracia.” (Grifo meu.)
No tocante ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, poder-se-ia, com alguma lucidez, falar em “direitos especiais”? Obviamente que não, mas de acesso aos mesmos direitos. Por esse motivo, parece-me infundada a posição de certos autores que acusaram o Supremo Tribunal Federal brasileiro de legislar quando reconheceu que pessoas do mesmo sexo também vivem em uniões estáveis. Afinal, não ocorreu a criação de um direito novo, nem de um “direito gay” específico, e sim apenas a extensão de um direito já existente a um grupo que era excluído, o que contrariava o princípio da igualdade previsto na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos. Tal é a força normativa do princípio, que pouco importa que o parágrafo terceiro do artigo 226 do texto constitucional fale do reconhecimento como entidade familiar da união estável entre homem e mulher. Ademais, como se sabe, a hermenêutica dos direitos humanos segue o princípio de ampliar esses direitos, e não de restringi-los.
Por essa razão, e pela capacidade dos direitos humanos de se transformarem segundo o momento histórico, também não é relevante, para aplicar o princípio hoje, que os constituintes não tenham desejado esse alcance. Nos debates da Assembleia Nacional Constituinte, houve grande discussão sobre a proibição de discriminação por orientação sexual, prevista em emenda de José Genoíno. O relator da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, o então senador José Paulo Bisol, diante de acusações, defendeu aquela proibição em termos francamente homofóbicos:
Quanto ao problema da família, o nobre Constituinte estranhou a expressão “união estável”, como se ela incluísse a possibilidade de uniões entre homossexuais. Nobre Constituinte, não estou preocupado com as uniões dos homossexuais. Se eles querem fazer, que as façam! Desde que isto não se converta num escândalo social, é um direito deles. A palavra “casamento” também não evita, em si mesma essa expressão. Porque eles falam em casamento! Tenho lido nos jornais e até ouvi um Constituinte, aqui, falar: “Estamos permitindo casamento de homossexuais?” Meu Deus, não se trata disso! Apenas se trata de dizer que os homossexuais são seres humanos! E aqui disseram até que é uma questão de nascimento. Não vou a tanto. Acho que é mais um problema cultural e de formação. Mas, não entro em discussão. O que eu quero dizer é que os homossexuais não me perturbam. Acho que eles são pessoas humanas. E creio que ninguém tem o direito de não empregar um homem competente por ser ele um homossexual! É isto.
O “nobre” era o deputado José Mendonça de Morais, que, além de pregar a homofobia, foi um dos defensores da censura na Assembleia. Quanto a Bisol, há o que se dizer a seu favor, pois chegava ao ponto de considerar homossexuais “pessoas humanas” (no que superava diversos constituintes), embora com “problema”. De fato, tinham um problema, do qual esses constituintes faziam parte: a homofobia.
A emenda acabou rejeitada porque, de acordo com o discurso dominante, o princípio da igualdade e da proibição da discriminação já contemplaria, em seu conteúdo, a vedação à discriminação por orientação sexual. Esse argumento, embora assumido pelos homofóbicos, é-lhes contraproducente: se era verdade que não se precisava, para evitar a discriminação, mencionar explicitamente a orientação sexual no que se tornou o artigo 5º, por que cobrar hoje, para que os homossexuais não sejam discriminados no direito ao casamento, que a previsão constitucional da união estável seja explícita a respeito?
O uso seletivo do princípio da igualdade por esses hermeneutas corresponde a mais um exemplo de hipócrita torção constitucional, para que o princípio seja eficaz apenas para não mencionar grupos discriminados, e não para igualar direitos.
Por conseguinte, a adequação e pertinência da bandeira do casamento igualitário, assumida na Argentina, parecem-me inegáveis – e a resistência que sofre decorre do preconceito de que pessoas que amam dessa forma possam ter sua dignidade (e sua existência) igualmente reconhecida e respeitada. Não faz sentido algum afirmar que não se é contra os homossexuais, mas que se é contrário a que eles casem. Imaginem quão antimusical seria o maestro que dissesse nada ter contra violoncelistas, desde que eles não tocassem publicamente.
A lei argentina, como era esperado, não veio sem resistências. Alberto Arias, velho chefe de registro civil da cidade de Concordia (e único advogado canônico de toda a província, segundo ele mesmo ressaltou), declarou que preferiria casar Alfredo Astiz (conhecido como “anjo loiro da morte” da ditadura argentina, um “pobre homem” segundo o funcionário) a casais do mesmo sexo. Simples demonstração de velhos sentimentos contrários aos direitos humanos? Talvez, porém a comparação é reveladora: parece denotar que, na oposição à lei do matrimônio igualitário e no apoio ao genocida, encontra-se em certos corações mais pios a mesma lógica: a do extermínio.
A lei do matrimônio igualitário segue outro espírito. É significativo que ela sirva para uma das peças de propaganda eleitoral da presidenta da Argentina, que afirma que ninguém perdeu direito algum com aquela medida; pelo contrário, houve um ganho de direitos àqueles que estavam desprovidos. No Brasil, na campanha de 2010, nenhum dos três candidatos à presidência da república com mais votos ousou defender legislação igual. E apenas um dos representantes do povo no Congresso Nacional, deputado Jean Wyllis, assumiu-se publicamente homossexual. Sua plataforma de atuação fundamenta-se nos direitos humanos: a liberdade de culto na defesa das religiões de origem africana, o direito à educação, direitos dos indígenas… Nada mais coerente: é no âmbito dessa categoria jurídica que se põe a luta contra a homofobia.
Professor da Uninove, em São Paulo. Organizou diversas antologias e é autor, entre outros, do volume de poesia Cinco lugares da fúria (2008) e de Para que servem os direitos humanos? (2009).

Pádua Fernandes
http://www.amalgama.blog.br/08/2011/casamento-e-homofobia/

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